Corria o ano de 1502, quando o explorador João da Nova – sempre cheio de novidades – anunciou ter descoberto uma pequena porção de terra isolada em meio ao Atlântico. A pequena ilha, alguns anos depois, quando finalmente entrou no mapa, graças aos esforços de D. Garcia de Noronha, capitão-mor da armada lisboeta, foi batizada de Ilha de Santa Helena, dada a proximidade entre sua descoberta e as festividades em homenagem à Helena de Constantinopla, a tal Santa.
A recém-descoberta ilha logo tornou-se parada obrigatória para as embarcações que iam e vinham das Índias Orientais, onde, diga-se, Portugal encontrava-se em ferrenha guerra contra os muçulmanos pelo controle da região de Goa. Com água fresca em abundância, a ilhota era um ponto ideal para reabastecimento no meio do caminho.
No ano seguinte à descoberta da ilha, o soldado Fernão Lopes e sua tropa foram enviados para Goa pelo general de fragatas Affonso de Albuquerque, com o objetivo de manter sob controle a situação pelas lados do oriente.
– Era uma tarefa bastante simples – relembra o general Albuquerque. – Não sei como aquele incompetente foi perder o controle daquela maneira… – Lamenta-se.
O fato é que, dois anos depois, quando voltou a Goa com reforços, encontrou um pequeno pandemônio com o destacamento que havia deixado lá. Alguns soldados haviam se casado com mulheres locais, outros haviam simplesmente sumido, o próprio Fernão Lopes mudara de lado e, agora, convertido ao islamismo, decidira lutar junto de Rasul Khan, o inimigo de Portugal.
Refeito do choque inicial, Albuquerque conseguiu domar a situação e, alguns dias depois, tinha os homens sob seu jugo. É importante lembrar que estamos na gênese do século 16, onde a ideia de direitos humanos não era lá muito respeitada. Tendo isso em vista, o leitor poderá imaginar o tratamento que os ditos traidores receberam por parte da Coroa portuguesa. O líder, Fernão Lopes, fora entregue aos seus conterrâneos com a condição de que lhe poupassem a vida. Antes não tivessem poupado.
Após mais de dez anos de cárcere em solos indianos – ou portugueses, tendo em vista que, na época, Goa era território português –, Lopes foi enviado de volta à sua terra natal, em decorrência da morte do general Affonso de Albuquerque. De fato, como prometido, vivo ele estava. Mas essa era a melhor definição que se poderia dar sobre ele. Por ser o líder da tropa e considerado um apóstata, os castigos físicos que lhe foram impingidos foram árduos e profundos. Em poucas palavras: arrancaram-lhe o nariz, extirparam-lhe as duas orelhas, a mão direita já não fazia mais parte de seu corpo, dois dedos da mão esquerda também lhe foram decepados. Coisas de século 16… Durante a viagem de navio, seus captores fizeram sua barba e cortaram seu cabelo com conchas de mariscos, portanto, cicatrizes lhe cobriam toda a face.
Embora as punições aos outros fossem um pouco mais brandas, não deixavam de ser severas, de modo que, durante a travessia, metade dos prisioneiros feneceu por conta de infecções. Outros foram, de fato, mortos, tamanho o sadismo que tomava os marinheiros. Por algum milagre ou razão pouco compreensível pela ciência, Fernão Lopes e mais três soldados foram os únicos que sobreviveram.
Como se pode imaginar, o moral do nosso personagem não estava lá muito alto por aqueles dias. Totalmente desfigurado, era constante motivo de chacota por parte da armada que o levava de volta. Sua figura era, de fato, assustadora. Com isso, nasceu nele a vontade de nunca mais regressar ao seu país, mesmo que isso significasse nunca mais ver sua família. Morrer, depois de tudo o que passou – e sobreviveu – parecia não lhe ser uma opção. A sua melhor saída, portanto, era tentar uma fuga durante a tradicional parada na Ilha de Santa Helena. E assim foi.
Quando encontrou uma oportunidade – e, pelo o que contam, nem foi tão difícil assim, afinal, quem imaginaria que algum doido iria fugir para dentro de uma ilha inabitada? –, saiu em disparada para o interior da ilha, levando apenas os farrapos que carregava no corpo.
Nessa hora, os soldados se olharam, refletiram, coçaram a cabeça, se olharam novamente e disseram em uníssono:
– Nahn…. Deixa esse cara pra lá, vai. Vambora!
Em um último e único gesto de bondade, após tanto escárnio diante das deformidades e desditas de Fernão Lopes, parecem ter sentido a consciência pesar – hipótese da qual este autor duvida, já que, como bem lembrado, estamos no germe do século 16 e, se direitos humanos não estava muito em voga, o que dizer de exames mais profundos de consciência? – e acabaram deixando alguns víveres, umas sementes e um par de roupas velhas para o coitado que, julgavam, não duraria uma semana naquela situação. E partiram.
O fato é que ali, naquele momento, começava a história do primeiro colono de Santa Helena! Aos trancos e barrancos, muito provavelmente, ele conseguiu cavar uma pequena vala que lhe serviu de moradia e, explorando a ilha, foi achando meios para a sua subsistência.
Cerca de um ano depois, a mesma esquadra parava na ilha e se assustava ao notar traços de civilização por aquelas redondezas. “Ora, só poderia ser aquele que deixamos aqui um ano atrás”, pensaram. E estavam certos. Fernão Lopes prosperou e sua existência chegava aos ouvidos de outras embarcações, que, debalde, tentavam fazer contato com aquele único habitante da ilha, tentativa sempre frustrada pelo temor de Lopes de ver outras pessoas. De todo modo, sempre deixavam alguma coisa para ele, como alimento, ferramentas, roupas e, certa feita, até uma galinha que, segundo a crônica da época, tornou-se seu grande companheiro na ilha.
Os anos foram se passando, Fernão Lopes foi perdendo o medo de travar contato com os navegantes que ali paravam e essa fascinante história chegou aos ouvidos de D. Manuel I, rei de Portugal, que quis conhecer o tal morador de Santa Helena. Embora inicialmente muito contrariado, afinal, ainda tinha muita vergonha de que as pessoas lhe vissem daquela forma, acabou cedendo às vontades régias e lá foi ele para Portugal, com a condição de que, depois de bater esse papo com Manu, ele pudesse voltar à sua ilha.
Para não ser visto, as entrevistas com a Coroa eram realizadas na calada da noite, quando ele se deslocava pela cidade com maior tranquilidade. Encantado com sua história, o rei lhe concedeu o perdão e atendeu ao seu único pedido: dar um pulo em Roma e conseguir, também, o perdão papal.
Terminado seu périplo, Fernão Lopes voltou para a sua ilha e lá permaneceu até 1545, quando de sua morte. Árvores frutíferas tipicamente europeias, plantações diversas, uma pequena criação de caprinos e até uma capela passaram a ser vistos por aqueles que lá aportavam.
Cerca de três séculos depois, a ilha serviu de morada ao seu, provavelmente, mais célebre habitante, Napoleão Bonaparte que, alimentando-se de frutas e animais endêmicos à ilha e passando horas a fio a observar a imensidão azul do mar, a única paisagem disponível, acabava misticamente ligado ao primeiro habitante daquelas terras tão distantes de tudo.
Incrível relato!! Vamso colocar essa ilhota já nossa rota aérea via trike??